as invenções da imagem


Os estudiosos e historiadores de cinema vêem Cidadão Kane como uma tentativa de criar outra forma de filmagem, estudando e combinando as que existiam na época.

Dessa tentativa surgiram inovações nas tomadas de câmara, nos efeitos especiais e na montagem que alteraram consideravelmente a gramática cinematográfica. 

Tomadas de câmara


Em Cidadão Kane, Welles usou tomadas de câmara que fugiam dos padrões de Hollywood, associadas à experiência e à inventividade de Gregg Toland, um dos maiores cinegrafistas da época.

>Ângulo baixo

Tomadas de ângulo baixo permitiram que a câmara olhasse para o alto em várias cenas, as da festa no jornal e da recepção a Kane pelos funcionários. 




Antes, o ângulo baixo era impossível, porque os cenários não tinham forro e apareciam fios, microfones e refletores. Toland resolveu esse problema fechando-os em cima com panos de musselina. Em outros casos, a câmara ficava numa trincheira, para obter o ângulo baixo correto.  

                      

A experimentação que Welles trouxe do teatro para o estúdio estimulou Toland a usos da câmara radicais, em seu tempo, apoiado nos avanços de seu equipamento. 

Com a chegada do som ao cinema, a câmara foi colocada dentro de uma caixa, para abafar o ruído do mecanismo. Mas, em meados de 1930, surgiu a câmara Mitchell BNC, menor e silenciosa, que Toland usaria em Cidadão Kane.

>Foco profundo

Normalmente, quando se faz um filme ou se tira uma foto, o que está em primeiro plano fica nítido e o que está no fundo fica fora de foco. 

Outra inovação de Cidadão Kane foi, justamente, o uso extensivo do foco profundo, deixar tudo nítido, do primeiro plano ao fundo da cena. 

Isso levou certo tempo, para ser possível. Com a chegada do som ao cinema, os refletores de arco, que eram ruidosos, deram lugar a lâmpadas incandescentes, silenciosas, mas de menor luminosidade.

Com isso, as lentes das câmaras eram colocadas na abertura máxima, para captar mais luz e a profundidade do foco diminuía.

Para aprofundar o foco, podiam-se usar lentes grandes-angulares, com uma abertura menor. Mas o reflexo das lentes diminuía a captação de luz e os filmes sensíveis, necessários para luminosidade menor, granulavam demais, prejudicando a imagem.

Foi quando surgiram, em parte pelas exigências da cor no cinema, novos refletores de arco, silenciosos e muito mais potentes. E novos filmes, muito mais sensíveis e livres do problema da granulação.  

Esses avanços eram recentes, à época de Cidadão Kane. Mas, antes disso, Toland já filmava com profundidade de campo, recobrindo as lentes com uma película química para reduzir o reflexo e usando os filmes mais sensíveis que encontrava no mercado. 

A célebre sequência na casa da Sra. Kane, no início do filme, é um excelente exemplo de tomada em foco profundo.

Nesta cena, há três planos: no primeiro, a mãe assinando um papel; no segundo, o pai junto à porta e, no terceiro, o menino Kane, do lado de fora da janela.

Normalmente, numa cena como esta, o diretor enfocaria o primeiro plano e deixaria o resto fora de foco. No entanto, as imagens estão nítidas nos três planos. 




O foco profundo permitiu tomadas longas, ampliando o espaço cênico e mergulhando o espectador na ação. 

Um bom exemplo disso é a panorâmica do espólio de Xanadu, onde a grua descreve um gracioso vôo pelos pertences de Kane, revelando a vida que ele construiu.



Segundo o crítico André Bazin, um dos responsáveis pelo resgate de Cidadão Kane, o foco profundo e as tomadas longas trouxeram uma nova narração ao cinema.

Nessa narração há vários planos de ação, reduzindo os cortes, mantendo a integridade espacial da cena e dando ao espectador a escolha do que ver, ao invés de trazer para ele apenas uma parte dessa ação, selecionada pelo diretor através do foco, do close ou do corte.       

O desenvolvimento da fotografia de foco profundo foi interrompido até depois da II Guerra, quando uma mudança em direção ao realismo a introduziu na principal corrente de Hollywood, com Os melhores anos de nossas vidas, 1946, considerado um dos melhores trabalhos de Toland.

Efeitos especiais

Em Cidadão Kane há um trabalho consideravelmente maior, em efeitos especiais, do que na maioria dos filmes hollywoodianos da época.

Um levantamento mostrou que mais de 50% do copião do filme envolve algum recurso desse tipo e que, em alguns rolos . essa porcentagem chega a 80%.

Com isso, Cidadão Kane é uma obra-prima da ilusão do cinema. Se, como disse Welles, filmar era como brincar com um trem elétrico gigante, os efeitos especiais devem ter sido, para ele, uma verdadeira maleta de mágico, repleta de truques.


Welles amava  truques mágicos. Amava, também, a magia do teatro, que incorporou ao cinema, dando a Cidadão Kane a dimensão dramática das obras-mestras.

De maneira geral, os efeitos usados em Cidadão Kane destoaram abertamente dos padrões cinematográficos da época e vários deles foram quebrados pela primeira vez nesse filme. Outros já haviam sido quebrados pelo próprio Toland, em filmes anteriores.

>Closes e jogos de lentes

Entre os recursos de efeito de Cidadão Kane estão os closes e o jogo de lentes, a rebobinagem do filme na câmara e as composições com a truca, inventada nessa época. 

Em close, as teclas da máquina de escrever de Leland escrevem weak (fraco), no papel, em referência à atuação de Susan como cantora lírica e os lábios de Kane pronunciam Rosebud. Em muitos desses closes, Toland usou o zoom, para aumentar o impacto.                                        
                                                                                
O jogo de lentes comparece em detalhes como a imagem distorcida da enfermeira, ao entrar no quarto de Kane.  Aqui, Welles queria um efeito surrealista, como se a câmara olhasse pelos cacos de vidro do globo.

Toland colocou uma lente de redução – cujo efeito é o de um binóculo ao contrário -  em frente a uma grande-angular, distorcendo a imagem. O efeito foi o da lente olho-de-peixe, que se tornou comum na década de 1960. 

                                

>Rebobinagem

Outro recurso de efeito especial, várias vezes usado por Toland em Cidadão Kane, foi a rebobinagem ou fusão da imagem dentro da câmara. 

Normalmente, esse processo se dá em duas partes: o fundo é escurecido e o primeiro plano é iluminado e filmado. Em seguida, o filme é rebobinado, o primeiro plano escurecido e o fundo iluminado e filmado. O resultado são duas cenas no mesmo pedaço de filme, sem tirá-lo da câmara.

É o que acontece na sequência inicial do filme, em Xanadu. Quando nos aproximamos do quarto de Kane, pelo lado de fora da janela, vemos sua silhueta. A luz diminui e, de repente, sem nenhum corte, estamos no quarto, diante do mesmo perfil (veja esta cena no vídeo abaixo, sobre Xanadu, em (Rebobinagem / >Truca / > + outros recursos)


Na cena da tentativa de suicido de Susan, não foi usado o foco profundo, mas outra rebobinagem.

De início, o fundo foi obscurecido e primeiro plano iluminado e filmado, com o copo, a colher e o vidro de pílulas. O filme foi rebobinado, o primeiro plano escurecido e o fundo iluminado e filmado, com a entrada de Kane e seu criado.


>Truca

A truca surgiu no início da década de 30 e foi inventada por Linwood G. Dunn (1904-1998), colaborador de Toland. 

A truca é um sistema mecânico de rebobinagem e trucagem ótica, onde uma câmara e um projetor se alinham frente a frente, rodando em sincronia. Nesse sistema, a câmara filma o filme projetado, compondo a imagem que tem em seu filme com aquela que captura do projetor.

Expondo duas vezes o copião da câmara, torna-se possível realizar fusões e superposições. Variando a luz no projetor, podem se criar fades.

Pode-se, também, obter efeitos compostos no copião da câmara, passando-se separadamente os componentes da imagem fotografada através do projetor.

Em Cidadão Kane, várias tomadas que parecem de foco profundo foram compostas na truca. A truca foi muito usada, quando o foco profundo não era possível por causa das lentes, do filme ou do tamanho do set. 

Mas Toland resistiu a esse sistema, mesmo quando lhe mostraram que, com ele, os efeitos de Cidadão Kane poderiam ser obtidos muito mais facilmente. E continuou usando a rebobinagem sempre que pôde, mesmo depois que outros a deixaram. 

> +outros recursos
 
Em Cidadão Kane, a truca também foi usada em associação com outros recursos, como a cortina, no qual uma imagem substitui a outra, cobrindo-a ou pressionando-a.

Na Fundação Thatcher, a estátua de seu fundador é uma miniatura. Por meio de uma cortina, nós nos deslocamos para o pé dessa estátua, que é um cenário parcial e a câmara recua, para mostrar Thompson e o arquivista, como se fosse um único plano.

Na estréia da ópera, dois funcionários fazem um gesto de desagrado sobre Susan, no alto dos bastidores. No que também parece um único plano, temos uma cortina horizontal para uma miniatura do alto dos bastidores e outra para os funcionários, num set parcial.

Outra cena, em que Kane aparece no fundo de uma arcada, em Xanadu, foi uma montagem, na truca, de três elementos:

Ao fundo ficou Kane, pelo processo de imagem reduzida. No centro, à sua volta, ficou a pintura em matte de uma galeria do Alhambra, com um elemento vitoriano diversificando o visual e o detalhe realista de sua sombra no chão. No primeiro plano, ficou uma porta em estilo espanhol com umbral neoclássico.

Pintura em matte é uma pintura, geralmente em vidro, usada como elemento de cena. No filme, a truca também associa pintura em matte a locações.

O cortejo de Kane e seus convidados para um piquenique em Everglades foi filmado na praia de Malibu, que é rodeada de montanhas. O artista de matte pintou um panorama mais nivelado e uma vegetação mais típica da Flórida.

Na truca também há combinações da pintura em matte com sets parciais, modelos e miniaturas, através de cortes e fusões, como na sequência inicial de Xanadu. Detalhes.











No comício de Kane no Madison Square Garden, apenas a plataforma dos oradores é um set com atores: o gigantesco salão e a platéia são pintados em matte e uma luz tremeluzente, através de pequenas aberturas na pintura,  sugere o movimento da platéia.

Um movimento simulado dá a  impressão de que a câmara, montada numa grua, desce até a arena. Planos inversos, na direção da platéia, são cheios de detalhes, como Emily e Kane Jr. num camarote. 






Na cena em que os empregados do Inquirer olham pela janela, quando Kane traz a noiva, apenas um detalhe do set foi construído, com a janela e parte do letreiro. O resto do edifício e seus arredores, foram pintados em matte.

Em Cidadão Kane, as montagens de truca também se associam à projeção de fundo.

Um exemplo é  o oceano por trás de Susan e o papagaio que grita, quando ela abandona Xanadu. Outro é cena de Joseph Cotten no asilo, representada diante de uma tela translúcida, onde foram projetados slides. 

                                


Um dos estratagemas preferidos de Welles e Toland para acentuar a profundidade de campo era colocar uma figura no extremo do segundo plano, como na cena em que Bernstein é visto no portal, quando Kane termina de escrever a crítica de Leland e o demite. Isso também foi um efeito de truca.

Montagem

>Cortes e fusões

Um recurso muito usado, na montagem de Cidadão Kane, é o corte como elemento expressivo, principalmente para marcar passagem de tempo.

Na sequência da contratação de novos jornalistas pelo Inquirer, a câmara corta da foto deles para eles ao vivo, posando numa outra foto, destinada a Kane.





Em outra sequência, Welles mostra a passagem do menino Kane à adolescência,  cortando de um presente de Natal para outro e unindo esses dois momentos com a frase “Feliz Natal e próspero Ano Novo”.

Na importante sequência do café da manhã de Kane e Emily, a câmara vai de um para outro, com roupas diferentes e em posições cada vez mais distantes, na mesa. E mostra, em apenas alguns minutos, o progressivo esfriamento entre ambos, ao longo de anos de relacionamento.
 






     

Outro exemplo é a fusão direta da aula de canto de Susan para a cena de alto impacto que é sua estréia na ópera.






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