o grande salão


O diretor de arte de Cidadão Kane foi Perry Ferguson (1901-1963), revelação do departamento de arte da RKO.

Mesmo com economia de custos, Cidadão Kane teve de 106 a 116 sets, um número incomum para a época, por causa das exigências do filme.

Havia uma grande diversidade de ambientações, para expressar um período de vida de 75 anos. A filmagem com profundidade de campo exigia primeiro plano e plano de fundo detalhados e dispendiosos.

Vários tinham tetos de musselina, para dar a impressão de forro ou estojos de câmara no chão, para tomadas em grande angular.

Grande parte dos desenhos e sketches originais da direção de arte foi descartada e o material que sobreviveu fornece apenas fragmentos do processo de criação dos espaços físicos onde se desenvolve a narrativa.

Mas um único exemplo notável mostra o suficiente para um relato razoavelmente completo a esse respeito: é o estudo sobre o salão nobre de Xanadu, o set mais importante do filme. 

Somos apresentados a esse salão quando Kane e Susan vão até ele, depois do fracasso dela como cantora de ópera e de sua tentativa de suicídio. O roteiro dá a seguinte informação:

Close-up de um enorme quebra-cabeças. Uma das mãos colocdas na última peça. Recuo da câmara, revelando o quebra-cabeças espalhado no chão.

Susan está no chão, diante do jogo. Kane, sentado numa cadeira confortável. Candelabros barrocos iluminam a cena e, atrás dele, domina uma sólida lareira renascentista


Mais tarde, quando os repórteres se reúnem ali, são dados detalhes adicionais:

Os suntuosos tapetes, candelabros et al ainda estão lá, mas agora um grande número de caixotes está amontoado contra as paredes (...) e um número de objetos (...) empilhados desordenadamente por todo o lugar.

Mobília, estátuas, quadros, bricabraques, coisas de enorme valor estão ao lado do fogão da cozinha, uma antiga cadeira de balanço e outros trastes, entre eles um velho trenó infantil.

Em algum lugar, no fundo, uma das grandes janelas góticas está aberta, o vento sopra através dela e papéis farfalham.

Xanadu parodiava Hearst e o estilo de via em San Simeon, como foi decididamente lembrado pela justaposição da grande lareira renascentista aos candelabros barrocos e à janela gótica apontadas pelo roteiro, que se justapõem, por sua vez, à mistura de objetos cotidianos e de valor empilhados no salão.

Mas as duas estruturas parecem diferentes, pois o salão de Xanadu não se desenvolveu como cópia do de Hearst, mas de acordo com a dinâmica do roteiro e as exigências do processo de produção.

Em sua concepção inicial, o salão de Xanadu é tratado não como o de Hearst, mas de forma mais ampla e imponente, antes de mais nada como um espaço monumental.

O termo-chave, no roteiro, é Renascença. Na biblioteca do departamento de arte da RKO havia a obra clássica The architecture of the Renaissance in Italy, de William J.Anderson, onde está o desenho de um salão dessa época. 

Esse desenho pode ter sido a origem do sketch preliminar, porque a utilização global do espaço é muito semelhante.

Ambas as estruturas apresentam um átrio imponente, uma escada conduzindo a uma galeria com o teto abobadado, no plano superior e figuras detalhadas no corrimão da escada, para dar noção de proporção.

Mas o desenhista do sketch fez alterações fundamentais, nesse desenho, para enfatizar determinados aspectos da história e das personagens.

Da esquerda para a direita, movimento mais eficaz em termos cinematográficos, há uma justaposição de motivos e estilos arquitetônicos incongruentes: gótico ao fundo, barroco veneziano na galeria e egípcio no patamar, usando uma esfinge.

De baixo para cima, ao longo da escada – outro movimento cinematograficamente eficaz - há vagas imagens do Extremo Oriente.

Na verdade, esse sketch é um sumário visual do roteiro. Uma escada de pedra maciça passa, simbolicamente, por uma mistura díspar de elementos que expressam uma vida dedicada ao poder. No topo, está uma esfinge, símbolo do mistério eterno e do mistério de Kane.

A escada continua além do monumento, apenas para levar a uma parede cheia de janelas. E o sentido de proporção é alterado: no desenho original, a escada complementa a figura humana. No sketch, a engolfa.

Na arquitetura verdadeira, essa disposição dos elementos não faria o menor sentido. Mas, na arquitetura do filme, eles estão adequados à contação da história.

Além do que essa postura obedece a um conjunto de convenções visuais bastante familiares à platéia, que vem do espetáculo cinematográfico que vemos no cinema épico.

Esse espetáculo está, por exemplo, no set de Babilônia, em Intolerância, de David W.Griffith e no templo de Moloch, em Sansão e Dalila, 1959, de Cecil B. De Mille (1881-1959).

São estruturas maciças e volumosas, superdecoradas com clichês visuais incongruentes, que estão ali para expressar esplendor, poder e dimensão histórica. 

No entanto, provavelmente por razões de orçamento, o resultado cênico desse sketch foi bastante enxugado nos detalhes.

Por outro lado, Welles e Toland devem ter percebido o enorme potencial dramático dos grandes espaços vazios do salão, para composições com profundidade de campo.

E as cenas de Susan e Kane, antes numa sala de estar, passaram para esse set, cuja reformulação em função dos custos resultou num dos efeitos mais espantosos e desconcertantes do filme. 

A escada foi reduzida em proeminência, utilizando-se uma outra, lateral, que sobrou de outro filme feito no estúdio.

A esfinge foi retirada, junto com outros detalhes dispendiosos e a lareira passou a ser o elemento central do set de Kane.

Essa lareira foi inspirada na da sala de jantar de San Simeon, um original gótico francês, com reis visigodos entalhados em pedra na cornija e um console medindo 3,55m de altura, o mais alto do castelo.

O sketch preliminar da cornija da lareira de Xanadu é uma interpretação quase literal da de San Simeon, alterada com um lintel em arco. O set final preserva o essencial do sketch, modificando outros detalhes para evitar a associação a Hearst.

A parte superior do consolo da lareira foi eliminado, para cortar gastos e também porque ficaria quase todo o tempo fora do alcance da câmara. O lintel, ampliado, ficou semelhante a um arco de proscênio e várias cenas acontecem como se o fosse.

O lintel teria sido produzido na oficina de gesso da RKO, em várias partes unidas.

Na maioria, os detalhes são motivos ornamentais clássicos, como rosáceas e flores-de-lis. Ao longo do arco, os motivos são náuticos, com uma peça de madeira flutuante, conchas e um cabo torcido, provavelmente fazendo referência à costa da Flórida, onde se localiza Xanadu.

Há também pés de milho e folhas de tabaco, naturais da América, que também estão nas colunas clássicas do Capitólio.

Na lareira, junto a Susan, há um fole inglês e um castiçal de igreja, provavelmente de origem francesa.

Enquanto a estatuária que flanqueia a lareira é nitidamente do estilo clássico, a figura sobre o consolo é em estilo medieval gótico.

A figura à direita pode ser um Hércules do tipo de Farnese e a figura eqüestre sugere o célebre Bamberg Rider, da catedral de Bamberg, na Alemanha.

Ambas são, provavelmente, cópias de originais bem conhecidos Cópias como essas percorriam a Europa, onde tinham um mercado entre os americanos ricos.

Mas a figura feminina foi feita, provavelmente, na oficina de gesso da RKO. Há um pequeno modelo sobre a mesa, no segundo apartamento de Susan.

O set é iluminado seletivamente, com áreas inteiras na obscuridade, preservando o caráter monumental, adaptando-se à dinâmica da concepção cinematográfica e, ao mesmo tempo, economizando custos.

Apenas os elementos mais importantes desse set foram construídos do zero: a lareira e o portal à sua esquerda. A escada ficou sendo a já existente.

As abóbadas se revelaram peças que podiam ser utilizadas sem acarretar gastos, como no enorme vestíbulo gótico à esquerda da escada.

As paredes ficaram desguarnecidas, exceto por uma ou outra tapeçaria ou outro ornamento, mas a baixa iluminação, a colocação estratégica da estatuária  e outros objetos de cena ajudavam a camuflar isso.

Rolos de veludo negro foram suspensos nos espaços vazios, resultando numa impressão de extrema profundidade.

Na tela, a escada, a perspectiva exagerada de profundidade e o plano iluminado funcionam juntos para dar ao set uma impressão de amplidão e mistério. Enquanto isso, detalhes individuais permitem outros efeitos.

Entre eles, uma gárgula medieval oculta parcialmente o Hércules e assoma ameaçadoramente em direção à figura neoclássica feminina, um trocadilho visual do tratamento dado a Susan por Kane e um toque wellesiano.

Kane e Susan vivem sua intimidade na área da lareira, um espaço enorme, formal e pomposo composto como uma sala de estar. Kane diz a Susan: “Nosso lar é aqui”, mas o que os rodeia está fora dessa ordem.

O calor doméstico está a mais de 7 metros de distância: Kane atravessa mais de 18 metros para chegar à sua poltrona preferida.

O diálogo se arrasta pelos grandes espaços vazios entre eles. Exceto pelo quebra-cabeças de Susan, nada existe, ao redor, de natureza íntima e pessoal.

O desenhista do sketch deve ter se inspirado numa reportagem da revista Fortune sobre San Simeon, publicada em 1941, da qual retirou vários detalhes desse salão.



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