as criações do som

Em Cidadão Kane, Welles trabalhou em estreita parceria com o compositor da trilha sonora, Bernard Herrmann, pontuando a ação dramática do filme com uma série de intervenções e recursos que ambos trouxeram de sua experiência no rádio.

Cidadão Kane foi a estréia de Herrmann no cinema. Mas ele havia sonorizado quase todos os programas de rádio do Mercury Theatre, incluindo a célebre encenação de A Guerra dos Mundos, de 1938, baseada na novela de H.G.Wells.

Entre as intervenções de som, no filme, está o eco do salão de Xanadu e da Biblioteca Thatcher expressando a monumentalidade e a intimidação desses ambientes, associado à volumetria que trouxe do expressionismo alemão. 

Entre as intervenções sonoras também está a bofetada que Kane dá em Susan, na tenda do piquenique, seguida pela gargalhada de uma mulher, em outra tenda, mostrando a alegria de uma e a tragédia da outra.

Numa referência a isso, Nat King Cole aparece ao piano, sem cantar e Alton Redd, cantor do estúdio, interpreta This can’t be love (Isto não pode ser amor).

Em cenas tensas como essa, as frases do diálogo se atropelam, como na vida real, quebrando a tradição teatral, em que cada um só fala depois do outro.

Em outras cenas, Welles mistura vozes, cada uma com uma frase ou um fragmento de frase, dando a impressão de que uma multidão está falando e chamando a atenção para o que ela comenta.

Welles também quebrou o padrão hollywoodiano da trilha sonora que percorre todo o filme como música de fundo. Em muitos momentos, a música aparece apenas para pontuar a cena, transportando para a ação ou sugerindo uma resposta emocional.

É isso que acontece na sequência do breakfast. A cena começa com uma valsa graciosa, que vai se tornando cada vez mais sombria, com o esfriamento da relação entre Kane e Emily, o endurecimento de Kane e seu rompimento com ela. 


Em outros momentos, a música é de arquivo. O cinejornal News on the March é embalado pela Marcha Belga, de Anthony Collins e, nas cenas de Xanadu, surge a trilha sonora do filme Gunga Din, de George Stevens (1904-1975), 1939, da RKO.

A trilha sonora de Cidadão Kane se caracterizou pela referência erudita, pela criatividade na marcação dramática e também pela quebra dos padrões da época. 

A trilha sonora clássica de Hollywood está na obra de compositores como Max Steiner, Eric Wolfgang Korngold e Miklos Rosza, inspirada no final do Romantismo, particularmente em Strauss, Mahler e Wagner.

Os elementos principais são a orquestração monumental, o uso de leitmotifs e a música marcando a ação dramática.
Mas a abordagem de Herrmann, em Cidadão Kane, destoa disso.


Nesse filme, há orquestrações grandiosas, como nas sequências da ópera Salaambo e no finale do filme. Mas em outras, como a inicial de Xanadu, Herrmann introduz um leitmotif para sopros, com um pequeno grupo de instrumentos.

Ou seja, Herrmann também usa leitmotifs e toda a partitura de Cidadão Kane se estrutura em torno deles, mas a unidade básica é uma frase curta, com poucas notas  e não uma melodia completa.

A música também pontua a ação dramática, mas sem o sentimentalismo de praxe. Pelos padrões de Hollywood, a cena em que o menino Charles é separado da mãe seria ideal para um grupo de violinos.

Mas Herrmann dá a ela um tratamento moderado e contido, na estreita medida da secura da mãe e da crueza da situação, que deixariam uma marca no comportamento de Kane. 


Em Cidadão Kane há, basicamente, quatro temas musicais e um conjunto de árias para a ópera cênica Salaambo.

Um primeiro é o da festa no jornal. Herrmann pegou a canção mexicana A poco no, de Pepe Guizar, mandou escrever uma nova letra e usou as quatro primeiras notas, que acompanham as palavras There is a man, como um dos principais leitmotifs do filme.


Um segundo tema é o de Rosebud, complementando esse leitmotif ou marcando o momento em que Kane derruba o globo de vidro.

Esses dois temas, repetidos inteiros ou em partes, com um grande número de variações, pontuam o conflito de Kane entre a memória da infância, os ideais da juventude e a corrupção da idade adulta.

Essas variações acompanham o desenvolvimento da história; de melodia e arranjo mais simples, no início da vida de Kane e cada vez mais densas e dissonantes, em seu desenrolar.

No finale do filme, ambos os temas são executadas como uma melodia contínua, por uma orquestra completa.

O terceiro e o quarto tema se referem a duas personagens femininas, Emily e Susan.


Emily é associada a uma valsa, que passa por uma série de variações, cada vez mais discordantes,  à medida que seu casamento se desintegra. 


Enquanto Emily tem a elegância da valsa, o tema de Susan respira a sensualidade do jazz. Na boate de Susan, o tema tocado é In a Mizz, de Charlie Barnet e Haven Johnson, também executado no piquenique de Everglades.

O vídeo abaixo traz, em sequência, o tema Rosebud, que ilustra a apresentação de Xanadu,na sequência inicial do filme; o tema da juventude de Kane, com a agitação de seu trabalho no jornal; o finale do filme e o tema There is a man, da festa no jornal.


A parte operística da trilha sonora inclui a ária Una você poco fa, do Barbeiro de Sevilha, de Rossini, interpretada por Susan com falta de fôlego, má dicção e uma voz pequena, desafinada e inexperiente. Quando Susan não acerta a nota, é porque a voz está semitonada (1).

A parte operística da trilha também inclui as árias para as cenas de ópera de Susan, compostas a partir de concepções de Welles, grande apaixonado por esse gênero de música.

Nessas cenas, Welles pensou em usar Thais, de Jules Massenet (1842-1912), Mas cena principal tinha que abrir com a ária do soprano, o que não existe em nenhuma ópera desse período. Além do que, segundo Herrmann, Thaís não seria adequada a essas cenas, com sua suave estrutura de cordas.   
  
Diante disso, Welles pediu a Herrmann que compusesse temas de uma ópera monumental, ambientada no Oriente. Algo parecido com Salammbô, de Ernest Reyer (2), baseada no romance homônimo de Flaubert. Que, segundo ele, daria a Susan a oportunidade de se vestir como uma cortesã da grande ópera neoclássica.

Durante a juventude, Welles tinha frequentado a Ópera de Chicago, assistindo a portentosas encenações de Thais, de Jules Massenet; Salomé, de Richard Strauss e Peléas e Melisande, de Claude Debussy (1862-1918).

A partir dessa pauta, Herrmann compôs as árias cênicas de Salaambo, um pastiche de ópera ambientada no Oriente, como pediu Welles, faustosamente orquestrado à maneira de Richard Strauss e com um libreto tomado da tragédia  Phédre, de Jean-Baptiste Racine (1639-1699).

Um jovem soprano da ópera de San Francisco, Jean Forward, foi encarregado de dublar Susan em Salaambo. Ela não canta mal, como frequentemente se pensa, mas não alcança o tom.

Isso porque, para expressar a incapacidade de Susan como soprano, Herrmann compôs Salaambo para uma tessitura muito aguda, de forma que uma voz modesta não conseguisse atingi-la. Na cena da tentativa de suicídio de Susan, essa área entra distorcida, como música de fundo.  

O vídeo abaixo traz três àrias cênicas de Salaambo: a de abertura, uma intermediária e a final, interpretadas pelo soprano Kiri Te Kanawa.



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